RELIGIÃO

Talvez este tópico seja o mais complexo de todos, posto que os chineses nunca desenvolveram uma idéia de “religião”, tal como conhecemos, que se constituísse num campo específico. As classificações ocidentais usualmente empregadas para esta questão não funcionam: afinal, talvez só o daoísmo pudesse ser entendido plenamente como uma religião, posto que o confucionismo defende a liberdade de crença e o budismo possui credos tão díspares que vão do ateísmo ao panteísmo ou ao politeísmo. Existe ainda uma religiosidade popular e folclórica possivelmente inclassificável, posto que ela nunca foi sistematizada (apenas o daoísmo a absorveu em alguns aspectos). Em linhas gerais, portanto, o mundo das crenças chinesas sempre foi lido por meios intelectuais, e tratado como uma questão pessoal, exceto nos casos em que estas crenças causavam desordem pública, tal como ocorreu algumas vezes com o budismo, com o islã e com o cristianismo (este último, causador da terrível revolta Taiping, +1851 +1864, provavelmente a única guerra religiosa que aconteceu no país até hoje). No mais, a morfologia das religiões chinesas pode ser artificialmente classificada do seguinte modo; desde cedo, esta civilização convive com uma crença politeísta riquíssima, em que se alternam as visões de extinção da vida, continuidade da alma ou mesmo de reencarnação. A intelectualidade confucionista adotou o ponto de vista moral e ecológico proposto por Confúcio, dirigindo a discussão das crenças para o ponto de vista científico e cosmológico, e centrando suas concepções na noção de Céu (Tian). Desta maneira, o material mais farto que temos sobre mitologia provém das fontes daoístas, conquanto o budismo adotou muitos dos seus pontos de vista para achinesar-se, propondo em troca os desafios sutis e profundos da metafísica e fazendo surgir, no país, a inédita escola Chan (em japonês, Zen).

O que veremos, pois, é uma relação diversa (e não cronológica) destes temas que podemos considerar “religiosos”. Primeiro, a Noção de Céu proposta nos antigos textos confucionistas. Depois, dois relatos sobre a criação do universo propostos no Huainanzi (séc. -2) e no mito de Pangu. Note-se que, na China Antiga, não havia um mito de criação como encontramos nos povos do Oriente Próximo, Índia ou Ocidente. Os intelectuais chineses tratavam a questão de modo bem simples: como nenhum deles estava no momento da criação, então, não poderiam saber como ela se deu. Acreditando ainda que o universo é um mundo natural, não se viam, por conseguinte, como desligados da natureza; e por conta disso, não havia qualquer tipo de revelação ou “religação” que influenciasse seu ponto de vista. Deste modo, as elaborações que ocorreram neste sentido foram todas teoréticas e intelectuais, tal como aparece no Huainanzi. Se haviam mitos nas épocas antigas, eram tão pouco importantes que nenhum autor chinês se preocupou em preservá-los como uma história autêntica. O Mito de Pangu só surge, na história e na literatura chinesa, em um período muito posterior aos tempos clássicos, e parece se tratar de uma narrativa importada, cujo sentido está claramente ligado ao problema da crença de um “início de tudo”. No seguir, três relatos sobre divindades chinesas, apresentando um caso de “divindades naturais” (no Huainanzi), de divindade popular (O deus do fogão, responsável pelos relatórios familiares perante a corte do Céu) e de divindade criada pela tradição (Deuses do Portão). Depois, uma breve análise sobre a concepção de alma em Zhuangzi (-369 -286), sobre os ritos para os Antepassados (Shujing), a crítica mordaz do confucionista e cético Wang Chong sobre a crença em fantasmas, e seu contraponto no Recordações de casos espitiruais (Soushenji, de Gan Bao, da época Tang). O tema da Imortalidade, credo daoísta que defendia a possibilidade de harmonizar-se com a natureza a tal ponto que a vida fosse inteiramente preservada surge pela primeira vez, sistematizado, no texto fundador de Ge Hong (O mestre que abraça a simplicidade, ou Baopuzi, 284+364), embora se tratasse de uma crença bem mais antiga. Histórias de feiticeiros e alquimistas (os Fangshi) são igualmente contadas na Relação das Coisas do Mundo (Bowushi, séc. +4?), almanaque de coisas estranhas que se contrapunha as visões racionalistas dos intelectuais confucionistas. Um terceiro texto, de 
Chang Shiyuan (1755 +1824), mostra, porém, esta crítica filosófica a crença na imortalidade. A primeira antologia de mitos e lendas aparece no texto do Tratado das Montanhas e dos Mares (Shanhaijing,), da época Han, que apresenta o sumário das crenças mitológicas chinesas antigas e sua geografia imaginária. Por fim, uma apresentação do Budismo chinês feita pelos próprios, e a crítica implacável contra eles feita por Hanyu, intelectual da época Tang. O último texto, do mesmo Hanyu, nos apresenta uma visão sobre a questão da existência dos demônios.


67. Shijing – apontamentos sobre o Céu.
Nesta coletânea de trechos, vemos algumas características que definiam o conceito e a crença em Tian – o Céu – segundo as concepções Zhou. Trata-se de uma entidade sem forma definida, mais próxima talvez, do que entendemos como “natureza”.

Céu é onisciente e onipresente.
Temei a ira de Céu e não vos entregueis à dissipação.
Temei para que o Céu não mude para convosco, e não ouseis seguir os maus caminhos.
O majestoso Céu tem visão clara e prolonga-se onde quer que vós ides.
O majestoso Céu vê tudo, como o sol, e alcança-vos em todas as vossas vadiagens licenciosas.

[...]

Sede reverentes! Sede reverentes! O Céu revelou a sua vontade. O seu mandato não é fácil de conservar. Não digais que o Céu está distante. Ele desce e sobe, interessando-se pelos nossos afazeres, e examina diariamente todas as nossas ações.

[...]

O Céu abençoa, protege e envia felicidade.
Que o Céu vos proteja e vos estabeleça, tornando-vos perfeitamente seguros. Se fordes verdadeiramente virtuosos, que felicidade é que ele vos recusa? Ele faz-vos receber muitas graças. Estas não numerosas, naturalmente.

[...]

O Céu criou as gentes e deu-lhes as suas aptidões.
Ao dar origem a todas as pessoas, o Céu ordenou que as suas naturezas fossem independentes. Algumas começam bem, mas poucas se conservam boas até à morte.



68. A criação – uma teoria do Huainanzi.
No texto a seguir, vemos umas das teorias de criação do universo presente no livro do Huainanzi, da época Han. Note-se que não se trata de uma elaboração mitológica, mas sim, de uma concepção científica baseada nos conhecimento da época.

Na época que o céu e a terra não tinham forma, esta foi chamada de grande mistura, pois tudo era vasto, imenso, obscuro e indistinto.

O dao começou nas imensidões do vazio. Ele engendrou o tempo, que engendrou os sopros. Os sopros geraram os contornos; sua dispersão iniciou a separação, e o que era leve e fátuo deu origem ao céu. O que era grosso e pesado se aglomerou para formar a terra. A reunião e a condensação do leve e sutil foi rápida, mas a solidificação e a aglomeração do pesado e denso foram delicadas. Assim é que o céu tornou-se fixo, mas a terra não.

As essências do céu e da terra constituem o yin e o yang. As essências condensadas de yin e yang constituem as quatro estações. As essências dispersas nas quatro estações constituem os dez mil seres.



69. A criação – o mito de Pangu.
Em contraposição ao texto do Huainanzi, temos aqui o mito de Pangu, que só surgiria na literatura chinesa séculos depois. Fica patente, pois, que os chineses antigos – ao menos, os intelectuais, tinham pouquíssimas preocupações com os problemas da origem, mas entendiam o processo de criação como uma continuidade. O mito de Pangu é bastante referencial para os ocidentais - mas na China, ele foi pouco difundido. Seguem-se dois relatos sobre a história de Pangu, presentes em textos diferentes, da época Tang e Song.

Estavam o céu e a terra mesclados como se fossem um ovo, e dali de dentro nasceu pangu.

O céu e a terra levaram dezoito mil anos para se separar; o yang, que era claro, foi se tornando o céu e o yin, que era escuro, foi se tornando a terra. E em meio a tudo isso, pangu foi transformando-se, alcançando a sabedoria do céu e a potencia da terra. Durante dezoito mil anos o céu foi subindo e a terra descendo, e pangu crescia junto, e quando eles alcançaram o máximo de sua separação, pangu também atingiu seu tamanho final. Depois vieram os três soberanos – do céu, da terra e dos homens.

[...]

Estando pangu – o primeiro que nasceu – a ponto de morrer, todo seu corpo se transformou; seu hálito se transformou no vento e nas nuvens; seu olho esquerdo o sol e a o direito a lua; as quatro extremidades e os cinco membros nas quatro direções e nos cinco cumes; o sangue nos rios azul e amarelo; os tendões e as veias nas principais vias de comunicação da terra; os músculos e a carne nas terras pantanosas; o cabelo e os demais pelos do corpo nos astros e planetas; a pele nos prados e bosques; os dentes e ossos nos minerais e nas pedras; o esperma a coluna nas perolas e jades; a transpiração e o suor na chuva e nos pântanos; e, por fim, as pulgas que haviam em seu corpo se transformaram, despertadas pelo contato do vento, nas pessoas e nos povos.



70. Huainanzi – Deuses dos espaços.
O Huainanzi é uma coletânea de textos diversos, em que se alternam concepções daoístas, cosmológicas e mitológicas. No fragmento seguinte, temos uma sucinta descrição de como se organizam os deuses dos espaços, que presidem as direções e os elementos.
O oriente pertence ao elemento madeira, cuja posse é do imperador azul; com seu ajudante jumang, ele governa a primavera, e leva um compasso na mão.

O sul, por sua parte, pertence ao elemento fogo, e é posse do imperador vermelho; com seu ajudante “Brilho vermelho”, ele rege o verão, e leva uma balança na mão.

O centro pertence ao elemento terra, e é lugar do imperador amarelo; com seu ajudante, o “senhor do solo”, ele tem o controle dos quatro pontos cardeais, e leva uma corda grossa nas mãos.

O ocidente pertence ao elemento metal, e é lugar do imperador branco; com seu ajudante, que se chama “colhedor de colheitas”, ele governa o outono, e leva uma régua na mão.

O norte pertence ao elemento água, e é lugar do imperador negro; com seu ajudante “preto-escuro”, governa o inverno, e leva um peso na mão.



71. O Deus da cozinha
Das crenças populares, o Deus da cozinha é uma das mais famosas e íntimas do povo chinês. Acredita-se que ele guarda e protege as famílias, levando anualmente um relatório para o tribunal do céu, onde os atos meritórios ou ruins serão julgados e pesados. Por esta razão as famílias (ou pessoas, individualmente) são abençoadas ou amaldiçoadas no ano que se seguirá. No entanto, com boas oferendas, pode-se subornar o deus da cozinha, que fará um relatório favorável no céu. Quanto a sua localização, a cozinha se trata do lugar mais importante na casa dos pobres – lá, reside toda a fartura ou miséria de uma família. Neste sucinto poema, Fang Zhengda (séc. 12) canta esta peculiaridade do povo chinês com ironia e sutileza.


No último dia da duodécima lua

O deus do Lar volta para o Céu para contar o que viu cá na Terra.

Antes de o queimarem e em fumo o tornarem toda a família lhe dá de comer para que fique com o ventre farto.

Leitão bem assado, peixe mui gostoso, bolos aloirados, frutos bem maduros,
O vinho um regalo, não se olha a despesas.

O deus do Lar esquece as querelas,

As palavras insolentes, as faltas de todos. Sobe ao Céu bêbado e satisfeito.

O que é preciso depois é arranjar outro Deus.



72. Os Deuses do portão.
O surgimento dos deuses do portão, guardiões protetores de casas, palácios e prédios, é desconhecido. Neste fragmento da “Epopéia do Macaco” (Siyouji, romance do século 13), Wu Chengen sugere uma das lendas sobre a origem destes dois deuses extremamente populares, mostrando a flexibilidade e o dinamismo da religião chinesa ao transformar pessoas comuns em deuses.

Tendo o imperador Taizong caído doente, um bando de diabos fez durante toda a noite grande algazarra nos seus aposentos. Mandou o soberano chamar os seus fiéis generais Qiu Chubao e Hu Qingde, e disse-lhes:

- Durante dezenove anos conduzi os meus exércitos em todas as direções, batalhando e fazendo a guerra; nunca conheci um único malefício, e eis que me aparecem agora os diabos. Talvez não acreditem, mas ouvi perfeitamente, nas últimas noites, os diabos fazerem algazarra diante das portas de entrada dos meus aposentos, atirarem tijolos e lançarem pedaços de telhas. De dia, acaba tudo, mas de noite a algazarra recomeça.

Qiu respondeu:
- Fique Vossa Majestade descansada, esta noite montarei guarda com Hu diante da porta do vosso palácio, para ver essas diabruras.

O imperador aquiesceu a esta proposta. Ao cair da noite, Qiu e Hu revestiram as suas armaduras, cobriram-se com os elmos e, de arma em punho, foram postar-se diante da porta do palácio. Durante toda a noite ninguém buliu e, essa noite, Taizong dormiu em paz.

No dia seguinte de manhã, o imperador agradeceu-lhes efusivamente, e desde esse dia começou a melhorar da sua enfermidade. Sucedeu o mesmo na segunda noite de guarda e nas seguintes. Como lhe custasse fatigar assim os seus bravos generais, o imperador, convocou os ministros e dirigiu-se-lhes nestes termos:

- Os meus dois generais estão fatigados de passarem a noite sem dormir, de guarda à porta do meu palácio. Quero mandar vir um artista que pinte um retrato fiel destes dois bravos para colar à porta do palácio. Veremos se isso bastará.

Os ministros obedeceram, e os dois pintores fizeram o retrato dos dois generais. Os retratos foram colados às portas e daí em diante nunca mais se ouviu qualquer rumor à entrada do palácio.



73. Da Alma, Zhuangzi.
Neste texto do séc. -4, o filósofo daoísta Zhuangzi propõe uma interessante teoria sobre a alma e o retorno do corpo. A análise deste fragmento tem feito supor diversas teorias sobre a especulação de Zhuangzi: tratar-se-ia de reencarnação, de renovação natural, manter-se-ia a identidade da alma, etc? O texto permanece em aberto para discussões de todos os âmbitos.
Considere o corpo humano com sua centena de ossos, as nove cavidades externas e os seis órgãos internos, tudo completo. Qual dessas partes prefere? Por acaso não gosta de todas igualmente, ou tem sua preferência? Esses órgãos prestam serviço de servos a mais alguém? Desde que os servos não se governam, servirão eles de senhores e servos por turnos? É inegável que existe uma alma para controlá-los. Porém, tenhamos ou não fixado a verdadeira natureza dessa alma, isso é coisa que pouco interessa à própria alma. Pois, uma vez tomando conta da forma material, prossegue em seu curso até exaurir-se. Consumir-se nos trabalhos e nos pesares da vida e ser arrastada sem possibilidade de parar em caminho - não é digna de pena? Trabalhar sem cessar a vida toda e depois, sem viver para colher os frutos, esgotada pelo labor, partir para não se sabe onde - não é uma razão para pesar? Os homens afirmam que não há morte - de que adianta isso? O corpo se decompõe e o espírito desaparece com ele. Não é motivo para tristeza? O mundo pode ser tão estúpido a ponto de não perceber isso? Ou serei eu somente o estúpido e os outros não? [...] Certa vez eu, Zhuang, sonhei que era uma borboleta, voando daqui para acolá, com todos os fins e propósitos de uma borboleta. Só tinha consciência de minha felicidade como borboleta sem saber que eu era eu. Depressa acordei e ali estava eu, eu mesmo, na verdade. Agora não sei se eu era um homem sonhando ser borboleta, ou se eu sou uma borboleta sonhando ser um homem. Entre um homem e uma borboleta há, naturalmente, uma distinção. A transição é chamada transformação de coisas materiais. [...] “Todas as espécies vêm de sementes. Certas sementes, caindo na água, tornam-se lentilhas-d'água (...) tornam-se liquens (...) que produzem o cavalo, que produzem o Homem. Quando o Homem envelhece, torna-se semente outra vez".



74. Dedicação aos Antepassados, Shijing.
O seguinte fragmento trata das oferendas que são realizadas, periodicamente, aos ancestrais. As famílias dedicam sempre um altar para seus antepassados, e as mais abastadas chegam a construir um pequeno templo. Trata-se de um ritual antiqüíssimo, que Confúcio buscou preservar, já estando presente no “Tratado das Poesias”.

Crescem bem cerrados os tributos (no solo), mas espalham os ramos espinhosos. Por que o fazem há tantos anos? Para que possamos plantar nosso milho e sacrificar milho; para que nosso milho possa ser abundante e nossos sacrifícios de milho abundantes. Quando nossos celeiros estão cheios e nossas provisões são contadas por dezenas de milhares, faremos apelos aos espíritos e preparamos grãos para as oferendas e sacrifícios. Fazemos os representantes dos mortos sentarem e pedimos-lhes para comer - assim procurando aumentar nossa felicidade. Com conduta correta e respeitosa, os touros e os carneiros todos puros, procedemos aos sacrifícios de inverno e de outono. Algum esfolam (as vítimas); outros cozinham (sua carne) ; outros preparam (a carne) ; outros ajustam (as diversas partes). O que oficia as preces faz sacrifícios dentro do portão do templo. E todo o serviço sacrifical é completo e brilhante. Majestosamente chegam nossos progenitores; seus espíritos gozam alegremente as oferendas; seus descendentes recebem a benção - eles o recompensarão com grande felicidade, com miríades de anos, com vida sem fim. Preparam o fogo com todo respeito; preparam os tabuleiros que são enormes - alguns para a carne assada, outros para o assado. As esposas que os presidem ainda fazem reverências, preparando os numerosos (menores) pratos. Os convivas e os visitantes passam a taça de mão em mão. Cada fôrma segue a regra; cada sorriso e cada palavra são como devem ser. Os espíritos chegam calmamente e cobrem todos com grandes bênçãos - milhares de anos como a recompensa (mais apropriada). Estamos muito cansados e terminamos cada cerimônia sem um erro. O apto encarregado das preces anuncia (a vontade dos espíritos) e procura o descendente para transmiti-Ia - "tem sido fragrante seu sacrifício filial e os espíritos apreciaram seu espírito e as iguarias. Eles lhe conferem centenas de bênçãos; todas como mais deseja, todas tão seguras como a lei. Você foi exato e pronto; foi correto e cuidadoso; eles lhe conferirão até o mais raro dos favores, em milhares e dezenas de milhares". As cerimônias tendo assim se completado e os sinos e tambores tendo dado o sinal, o descendente vai ocupar seu lugar e o encarregado das preces anuncia - Os espíritos beberam até fartar. - Os grandes representantes dos mortos levantam-se então e os sinos e tambores escoltam sua retirada (com a qual) os espíritos tranqüilamente voltam (para o lugar de onde vieram). Todos os servos, e as esposas que presidem, removem (as bandejas e pratos) sem demora. Os tios e primos (do sacrificante) todos se dirigem para um banquete privado. Os músicos todos vão tocar e prestam seu auxílio serenante à segunda bênção. As suas viandas são expostas; não há ninguém que não se sinta satisfeito e sim todos estão muito contentes. Bebem até fartar e comem até não quererem mais; grandes e pequenos todos curvam as cabeças (dizendo) - “Os espíritos apreciaram seus espíritos e iguarias e lhe darão vida longa. Seus sacrifícios, todas suas oportunidades são completamente dispensados. Possam seus filhos e seus netos jamais deixar de perpetuar esses serviços!”



75. Sobre Fantasmas, por Wang Chong.
Um dos textos mais interessantes do cético Wang Chong é sobre sua total descrença em fantasmas. Seus princípios de dúvida e prova se mostraram extremamente perspicazes neste caso, embasando a descrença metafísica dos confucionistas posteriores.

Diz o povo que o fantasma de um morto tem consciência: pode causar dano às pessoas. Pela analogia geral com os animais, um homem morto não se torna fantasma e é incapaz de causar dano aos vivos. O homem é um animal, e um animal é também um animal. Se um animal não se torna fantasma quando morre, como iria tornar-se fantasma um homem?

A vida do homem depende de seu espírito e esse espírito se extingue quando ele morre. O espírito do homem (qi, ou energia) vem de seu sangue e quando o sangue do homem, após sua morte, lhe sai do corpo, o espírito, ou energia, se exaure. A seguir, o corpo se decompõe e torna-se pó. A que se apegaria o espírito para tornar-se fantasma? Às vezes, comparamos um cego, ou um surdo, à vegetação comum, que não pode ver nem ouvir. Ora, quando o espírito deixa um homem, isso é algo mais sério do que a mera perda da visão ou da audição.

Desde que teve começo o universo, milhões de pessoas têm morrido, em tempos diferentes. O número dos que hoje vivem é muito menor que o dos que morreram no passado. Se, portanto, os mortos se tornassem fantasmas, deveríamos encontrar um fantasma a cada passo. Se alguém vê fantasmas junto a seu leito de morte, deveria vê-los aos milhões, enchendo todas as ruas, os becos, os vestíbulos e os pátios, e não apenas ver um ou dois fantasmas.

É da natureza das coisas que um fogo novo possa ser aceso, mas não há fogo extinto que comece a arder de novo. Novos seres humanos nascem, mas é impossível que um homem morto volte a viver.

Se fosse possível reanimar um fogo já extinto, então eu estaria inclinado a aceitar a suposição de que os mortos podem voltar a receber contorno e forma. Pela analogia com o fogo extinto, é claro que os mortos não podem viver de novo como fantasmas.

O que entendemos por fantasmas é serem eles os espíritos dos mortos. Mas, se isto é correto, então, quando alguém vê um fantasma, deveria ver somente o espírito nu, e não vestido de túnica e cinto. Pois a roupa não é feita de espírito; quando enterrada, decompõe-se juntamente com o corpo do morto. É desarrazoado admitir que se conserve para que o fantasma a use. É possível argumentar que o espírito de um homem depende da energia de seu sangue e que essa energia desapareça com a decomposição do corpo mas o espírito lhe sobreviva para tornar-se fantasma. Claro é, porém, que à roupa de um homem, feita de algodão ou seda, não se infunde essa energia do sangue, da maneira por que isso ocorre ao corpo. Como, então, poderá a roupa manter seu contorno e seu formato? Assim, se admitirmos que, quando alguém vê a roupa de um fantasma, isso provém da imaginação, também devemos dizer que, quando alguém vê a forma de um fantasma, isso igualmente provém da imaginação. E, portanto, o que é imaginado não é o espírito de um morto.

A forma decorre da associação com o espírito, mas o espírito também se torna consciente por associação com a forma material. Não havendo fogo que arda por si só, como haverá espírito consciente sem corpo? Quando pessoas falam e fazem coisas ao lado de quem dorme, o adormecido não sabe disso. Da mesma forma, quando se fazem coisas boas ou más na presença de um caixão, o defunto não pode ter consciência disso. Se, portanto, quem está simplesmente a dormir, com sua forma corporal intacta, não pode ter consciência do que ocorre, como será isto possível quando a forma corporal já estiver decomposta?

Se alguém é atacado e ferido por outra pessoa, faz uma queixa à autoridade e conta o fato aos outros, porque tem consciência. Às vezes, alguém é assassinado e ninguém sabe quem foi o assassino, ou as vezes nem mesmo se sabe do paradeiro da vítima. Se a vítima morta tivesse consciência, por certo ficaria encolerizada com o assassino e, conseqüentemente, seria capaz de queixar-se às autoridades e dar-lhes o nome do criminoso; ou poderia ir à sua casa e dizer à família onde se encontrava seu cadáver. Como o morto não faz tal coisa, podemos concluir que ele não tem consciência.

Um homem em boa saúde tem a mente em bom funcionamento, mas, quando cai doente, sua mente se torna confusa, porque seu espírito foi perturbado. A morte é, por assim dizer, o extremo da doença. Se a mente de alguém já está confusa e incoerente quando alguém se acha enfermo, ainda mais o deverá estar quando ele estiver morto. Quando o espírito é perturbado, a mente perde seu poder de reconhecimento; isto deve ser ainda mais certo quando o espírito se dispersa. Um homem morre como um fogo se extingue. Um fogo extinto não produz luz e um homem morto não pode ter consciência. Os dois casos são estritamente comparáveis.

Se um homem não pode tornar-se fantasma, os mortos não podem causar dano a ninguém. Como se prova isso? A força de um vem de sua nutrição e, quando é forte, ele pode cometer violência. Um doente, porém, não pode comer nem beber como de hábito, torna-se gradativamente mais fraco, até morrer. Ora, quando alguém está muito doente, não pode sequer denunciar ou gritar contra um inimigo em seu quarto, ou impedir que um ladrão lhe roube as coisas. Isso, em razão de sua condição de enfraquecimento. A morte é o extremo dessa condição de enfraquecimento. Como poderia, então, um fantasma fazer mal a homens? Alguém pode sonhar que feriu ou matou uma pessoa e, no dia seguinte; desperta e vê seu próprio corpo, e o corpo da pessoa que sonhou ter matado, e não pode encontrar quaisquer ferimentos. Ora, o sonho vem do espírito. Se o espírito, num sonho, não pode causar dano real a ninguém, como poderá fazê-lo o espírito de um morto.



76. Fantasmas, do Soushenji
Nesta “Recordações de casos espirituais” de Gan Bao, da Dinastia Tang, temos o contraponto literário do ceticismo proposto por Wang Chong. O povo chinês, bastante supersticioso, adorava se divertir com estas fábulas de terror, e não raramente acreditava nelas.

Durante a dinastia Han, Hochang, de Jiujiang, inspetor da prefeitura de Jiao, foi a terra de Gaoan, in Cangwu, a trabalho. Quando a noite chegou, ele pernoitou no Pavilhão do Ganso da neve. No meio da noite, uma mulher apareceu na entrada do pavilhão, acordando-o, e contou-lhe a seguinte história:

“Eu sou Su O da vila de Xiu, na província de Guangxin. Perdi meus parentes há muito tempo, e não tenho irmãos. Casei na família Shi, da minha província, mas a desgraça me perseguiu, e meu marido morreu. Eu tinha mais de duzentos tipos diferentes e variados de rolos de seda, e uma serva de nome Zhifu. Sozinha e sem recursos, não consegui suportar a situação e fui até a província vizinha vender minhas sedas. Eu aluguei uma carroça com um homem da minha terra chamado Wangbo, pela qual paguei doze mil moedas. Andei com Zhifu tentando vender as sedas, e neste último ano, no 20o dia do quarto mês, cheguei a este pavilhão. Tendo andando sem eira nem beira, todos os dias, sem um sentido definido; mas como Zhifu teve uma dor de estômago violenta, resolvi entrar nesta vila procurando ajuda e fogo par nos aquecer. O chefe da vila, Gongshou, pegou uma adaga e veio conferir minha carroça. Ele começou a perguntar: “de onde você veio? Onde está seu marido? O que você tem aí? Você viaja sozinha?”. Respondi: “E o que isso te interessa?”. Ele me agarrou pelo braço e disse-me que “homens jovens gostam de garotas bonitas. Vamos nos divertir juntos”. Aterrorizada, não pude ceder. Shou então me matou com uma facada, e depois, matou Zhifu também. Matou o boi da carroça, pôs fogo nela, vendeu minhas sedas, me enterrando aqui, construiu a base do pavilhão por cima de minha cova e ainda, realizou ritos e oferendas no pavilhão. Enquanto não obtiver a minha reparação, não posso ir para o Céu. Não tenho outra pessoa senão você a quem possa me dirigir, por isso contei minha história”.

Chang disse: “eu precisaria achar seu corpo. O que pode servir de evidência?”.

A mulher respondeu: “eu estou vestindo uma roupa branca bordada, com sapatos verdes de seda. Eles não se corromperam ainda. Eu gostaria que você fosse, depois, até minha casa, na minha terra, e enterrasse meus ossos junto com os do meu marido”.

A escavação confirmou a história. Chang ordenou ao oficial local que prendesse Gongshou, que confirmou a história sob tortura. Chang foi até Guangxin descobrir mais sobre Su O, e todo o caso foi corroborado. Os parentes de Gongshou também foram todos presos.

Chang escreveu um memorial dizendo: “em casos ordinários de assassinato, a punição não se estende aos familiares. Mas Shou era um degenerado, que se beneficiou do crime e que se escondeu da lei por mais de um ano. Somente uma vez a cada mil anos uma coisa dessas pode acontecer sem que ninguém saiba. Eu requisito que toda a família seja decapitada para provar a existência dos fantasmas, e assim ajudar as regiões inferiores na prática da justiça”.

O imperador aprovou o requerimento.



77. Imortalidade e o elixir da longa vida, por Gehong.
O Mestre que abraça a simplicidade (Baopuzi) é um texto do séc. +4, em que Gehong analisa várias questões relacionadas ao imaginário daoísta, a alquimia e a imortalidade. Gehong foi, na verdade, o autor que praticamente sistematizou a transição do daoísmo filosófico para o religioso; e a partir dali, as linhas principais desta nova crença estavam estabelecidas. No fragmento a seguir, Gehong fala do elixir da imortalidade, uma das buscas fundamentais dos daoístas antigos.


Os imortais nutrem seus corpos com drogas e prolongam sua vida com a aplicação de ciências ocultas, as energias internas não saem e os alimentos externos não entram no corpo. Ao conseguirem estender sua existência e não morrer, seus corpos antigos não se alteram. Se alguém conhece um destes caminhos para imortalidade, isto não é considerado uma dificuldade.

De todas as criaturas da natureza, o ser humano é a mais inteligente. Ele pode então compreender como se dá a criação e utilizar as inúmeras coisas ao seu dispor, conseguindo obter aquilo que Laozi chamava de “vida longa e estender a existência”. Como sabemos que a melhor medicina pode prolongar a vida, e levar a imortalidade, assim como a tartaruga e a garça conseguem também a longevidade, quem souber imitar estas disciplinas, conseguirá expandir sua vida ilimitadamente. Aqueles que obtiveram o dao estão habilitados a morar entre as nuvens e acima do céu, tal como habitar e nadar nos rios e nos mares.

Baopuzi disse: eu investiguei e li livros sobre nutrição da natureza humana, e coletei fórmulas para estender a existência. Eu pesquisei milhares de livros, e posso afirmar que a conversão do cinábrio (mercúrio) e do ouro líquido são as mais importantes. Estes dois elementos representam o ápice do caminho da imortalidade. (...) O ouro liquido e o cinábrio convertido, pois, podem penetrar nosso corpo, permeando o funcionamento de todo o sistema sanguíneo e energético, dispensando assim qualquer outro tipo de auxílio externo.



78. Os Fangshi, no Bowushi de Zhang Hua.
Zhanghua (232 +300), escreveu sua “Relação das coisas do Mundo” (Bowushi) em reação ao ceticismo dos filósofos letrados. Nele, uma geografia imaginária de mitos, criaturas fantásticas e outros elementos religiosos e folclóricos são narrados para os interessados nos mistérios. No trecho a seguir, vemos uma sucinta descrição dos Fangshi (mágicos, feiticeiros), e de suas habilidades.

Como era um grande interessado nos métodos de cultivo da saúde, e grande conhecedor de técnicas alquímicas, o imperador Wu da dinastia Wei convocou e congregou sábios destas artes, tais como Zuo Yuanfang e Huatuo, e seus seguidores, e não houve quem não acudisse ao seu pedido.

Eis aqui os fangshi que o primeiro soberano da dinastia Wei congregou: Wangzhen, de Shangdang; Fengjunda, de Longxi; Ganshi, de Ganlin; Lunusheng e Huatuo, também chamado de Yuanhua, do país de Qiao; Dong yannian, Tangyu, (...). Dos fangshi que haviam nos tempos de Wei, podemos destacar os seguintes: Ganshi, de Ganling, que era especialista em técnicas de respiração; Zuoci, de Lujiang, que era espeialista em técnicas sexuais, e Qiejian, de Yangcheng, que era especialista de jejum, três homens que chegaram a viver seiscentos anos cada um. Pois bem, tantos estes quanto os outros, similares, foram congregados pelo imperador Wu em seu reino de Wei, que evitou que partissem para outras cortes, dispersando-se.

Um deles, pois, era Ganshi. Uma vez, Caozhi perguntou qual era o segredo para chegar, como ele havia chegado, a ser um ancião com a aparência de um jovem. Ganshi o respondeu assim: com meu mestre, Hanshiya, bastava ir até o mar do sul e fazer ouro medicinal, do qual, uma vez, extraímos ao mar dez mil jin; logo pescamos carpas, untamos uma delas com a substancial medicinal e a deixamos em óleo fervente. Vimos que, mesmo no óleo fervendo, ela nadava e se mexia daqui pra lá, as vezes indo ao fundo e as vezes indo até a superfície, como se estivesse nadando em um lago. A outra que não estava untada com o ouro medicinal estava frita e pronta para comer. Disse ainda que esta substância medicinal se achava a mais de dez mil li de distancia e que era impossível encontrá-la se o buscador não fosse pessoalmente.

E aqui estavam presentes também as teorias benéficas a saúde do mestre daoísta boi azul, também chamado de Feng Junda, tal como se transmitiu a Huanfu Long; - temos que fazer exercícios físicos com freqüência, cuidando de não fazer pouco; devemos tomar cuidado também em não se exceder em comer demais, ou em misturar alimentos diversos. Convém deixar de lado as gorduras e sabores fortes, assim como o vinagre e o sal; evitar também preocupações e desassossegos; evitar as alegrias extremadas e as tristezas; manter-se afastado da fama e das honrarias, bem como não abusar do sexo. Na primavera e no verão, convém abrir-se e expelir, como no inverno e no outono deve-se fechar e acumular. O imperador Wu fez isso como indicado, e deu bom resultado.

Tal como recorre o imperador Wu em sua obra Dianlun, o rei se Chensi (chamado Caozhi) escreveu o seguinte em seu livro Biandaolun: meu irmão, o imperador, congregou os fangshi mais importantes do mundo: Ganshi de Ganling, Zuoci de Lujiang e Qiejian de Yangcheng. Ganshi é especialista em técnicas de respiração, Zuoci em técnicas sexuais e Qiejian em técnicas de jejum, e os tres chegaram vivos a idade de trezentos anos. Mas tanto meu pai, o imperador, quanto o príncipe herdeiro e meus irmãos se riem e não crêem nestas coisas. Da minha parte pude comprovar, porém, sem abandonar Qiejian até mesmo para dormir, como era capaz de caminhar e de ter uma vida normal depois de ter havido jejuado por mais de cem dias – apesar que qualquer homem comum, ao contrário, haveria morrido em menos de sete dias de abstinência total, o que não ocorreu com Qiejian. Por outro lado, as práticas de Zuoci englobam certam técnicas sexuais por meio das quais se pode prolongar a vida, porém se não nos dedicarmos inteiramente a elas, elas não surtirão efeito.

Finalmente, Ganshi chegou a velhice parecendo muito jovem. Além dels, vieram muitos outros fangshi, que foram reconhecidos como mestres – e assim, o soberano os colocou ao seu redor.



79. Sobre a Imortalidade.
Chang Shihyuan (1755 +1824), autor que viveu na mais conturbada época da civilização chinesa, a entrada para a modernidade, resgata o espírito científico e poético de seus antecessores confucionistas, considerando a imortalidade um evento literário – mas descrendo, completamente, em seu potencial religioso. Na verdade, sua concepção era de que crenças como essa atolavam o desenvolvimento da racionalidade chinesa, tornando-a um país atrasado frente as ameaças estrangeiras.

Todas as coisas vivas deste universo morrem. Entre plantas, aves, animais e insetos, uns nascem pela manhã e morrem à tarde, uns têm o período de um ano de vida, e uns duram dez, ou cem, ou mil anos. Mas todos morrem. A diferença está simplesmente na extensão do tempo.

O mesmo é exato quanto ao homem. Quando está vivo, trabalha e se ocupa com alguma coisa, e preocupa-se e planeja como se fosse viver para sempre. Mas, quando seu espírito se dispersa e ele morre, não consegue sequer que cresça carne bastante para lhe cobrir os ossos brancos. A morte lhe chega exatamente como chega às plantas, aves, animais e insetos.

Um homem educado tem consciência desse fato. Portanto, não encara a vida e a morte como dependentes da existência ou não-existência da forma corpórea, e sim do desenvolvimento ou decadência de seu espírito de vida. Quando alguém está perfeitamente bem de corpo, mas seu espírito vital se foi, pode por certo ser tido como morto. Se, porém, o espírito de vida de alguém se desenvolveu para encontrar expressão em princípios de verdade e justiça, ou na literatura, torna-se ele então parte do grande rio da vida deste universo. Está liberto, então, dessa dependência de um corpo material.

Nos clássicos e na história encontramos os sábios antigos, que morreram há muito tempo, mas cujas luzes brilham através das eras como as estrelas e o sol. Posso em verdade dizer que esses homens ainda estão vivendo conosco. Assim, ser o homem mortal ou imortal depende inteiramente do próprio homem. Todavia, todos os homens morrem e poucos realmente há que se tornam imortais. O intelectual deveria decidir-se e confiar em si mesmo.



80. Criaturas bestiais, do Shanhaijing.
Datado da época Han, o Tratado das Montanhas e dos Mares é a primeira enciclopédia mitológica chinesa. Sima Qian o criticou diretamente, afirmando serem todas as suas informações absolutamente falsas e sem comprovação. No entanto, para o senso comum, o Shanhaijing era o apanágio do imaginário, o manancial das crenças fantásticas que alimentava a superstição. A seguir, uma dos textos em que se descrevem criaturas fantásticas do bestiário mágico chinês.

Durante uma prolongada viagem, Da Yu visitou nove continentes e atravessou quatro mares, no entanto, nem todos os lugares por onde passou eram acolhedores: na realidade, algumas destas regiões eram habitadas por demônios hostis e feras bestiais.

Na extremidade do Mar do Sul, havia uma região toda em chamas, habitada por demônios de cara humana e corpos peludos, monstruosos, que das suas bocas gigantescas lançavam constantemente labaredas e fumo, atacando, assim, os animais, as aves e mesmo os humanos.

Na costa do Mar do Sul havia, ainda, um país de homens-crocodilos tendo os seus habitantes uma cabeça humana, a bocarra dos crocodilos, o corpo coberto de densos pêlos pretos e, mais estranho ainda, dois gigantescos pés virados para trás. Se encontrassem alguém, primeiro lançavam uma terrível gargalhada para depois saltarem sobre o desgraçado engolindo-o por completo. Estes demônios vagabundeavam pelas florestas levando com eles flautas de bambu que tocavam produzindo uma melodia dolente.

Entre os países imaginários havia uns mais inacessíveis que outros, tais como: o dos homens zarolhos - cujos habitantes só tinham um olho localizado verticalmente no centro do rosto, o dos homens dos peitos furados, o dos homens com três cabeças - cujos habitantes podiam olhar em três direções ao mesmo tempo e pronunciar simultaneamente três vozes diferentes.

No que se refere às feras bestiais, os países imaginários possuíam numerosos e diversos gêneros, das quais só citaremos aqui algumas.

Havia umas chamadas Qiong Qi, semelhantes aos tigres, mas com duas asas gigantescas. Eram tão gananciosas quanto cruéis e quando conseguiam capturar um ser humano começavam a roê-lo pela cabeça e acabavam nos pés, engolindo mesmo todos os seus ossos e cabelos.

Havia um gênero de raposas com nove caudas aparentemente esbeltas e encantadoras, de focinho pontiagudo, pêlos dourados e espessas caudas, mas que, na realidade eram extremamente manhosas, podendo-se metamorfosear em terríveis criaturas, transformando-se, por vezes, em figuras de lindas jovens que atraíam os homens devorando-os depois.

Nas florestas das montanhas do Norte da China havia um gênero de borboletas vermelhas, do tamanho de elefantes, que sobreviviam sugando o sangue de outros animais.

Uma outra fera bestial era um gênero de abelha venenosa de cor preta que, quando esvoaçava, emitia um zumbido que se transmitia a vários quilômetros de distância, sendo a sua picada muito dolorosa e o veneno dela, mortal.

Em certas regiões meridionais vivia à beira dos lagos um animal extremamente venenoso chamado Yu, que tinha apenas três polegadas de comprimento mas uma carapaça tão dura como uma tartaruga. Era um ser extraordinariamente sinistro e cruel que habitualmente se escondia nos lugares sombrios esperando a passagem de uma presa fácil. Se alguém passasse pelas vicinalidades donde estava emboscado, o animal abria a sua boca lançando um jato venenoso quer sobre a pessoa, ou no seu reflexo, na água, causando-lhe assim uma morte violenta. No entanto, graças à existência dum país adjacente a esta região, cujos habitantes eram bons caçadores, e que apreciavam comer a carne dos Yu conjuntamente com legumes, estes animais estavam em vias de extinção e os humanos estavam menos ameaçados.

Segundo umas lendas antigas, depois de dominar as águas, os povos de todo o mundo passaram a respeitar Da Yu como o salvador da humanidade, elegendo-o como o seu soberano. Para se precaver da latente ameaça dos demônios hostis e das feras bestiais aos seres humanos, Da Yu ordenou que todos os lugares onde se produziam objetos de ferro e bronze tinham que entregar uma determinada quantia das suas matérias-primas para com estas se fundirem nove trípodes gigantescos nos quais, baseando-se nas experiências e recordações de todas as suas viagens, ele fez cinzelar todas as figuras de demônios e feras bestiais assim como as suas regiões de origem de modo a ajudar a humanidade a precaver-se melhor contra estes.



81. O Budismo chinês.
Neste trecho do Lankavatara sutra, vemos um dos primeiros discursos legitimamente budistas, fé estrangeira que verdadeiramente se instalou na China, abarcando grandes levas a população mais pobre, sequiosa de uma crença simples e que pregasse a igualdade. Ainda assim, o budismo teve que se adaptar ao mundo chinês, transformando algumas de suas concepções. A tradução que se segue veio do chinês, contendo já algumas dessas “adequações”.

Pela ausência do "eu" nas coisas tem-se entendido que, sendo os elementos que formam os agregados da personalidade e seu mundo objetivo caracterizados pela natureza do maya e destituídos de qualquer coisa que possa ser chamada ego-substância, são eles, portanto, não-nascidos e não têm natureza própria. Como se poderia dizer que as coisas têm uma ego-alma? Pela ausência do "eu" nas pessoas tem-se entendido que, nos agregados que formam a personalidade, não há ego-substância, nem coisa alguma que se assemelhe à ego-substância ou que a ela pertença. O sistema mental, que é a marca mais característica da personalidade, originou-se da ignorância, da discriminação, do desejo e da ação; e suas atividades se perpetuam pela percepção, pela apreensão e pela adesão aos objetos como se fossem reais. A lembrança dessas discriminações, desses desejos, adesões e ações armazena-se na Mente Universal desde o tempo sem começo, e ainda está sendo acumulada onde condiciona o aparecimento da personalidade e de seu ambiente e produz mudança e destruição de momento a momento. As manifestações são como um rio, uma semente, uma lâmpada, uma nuvem o vento a Mente Universal, em sua voracidade de tudo armazena; é como um macaco que nunca repousa, como uma mosca sempre à busca de alimento e sem preferências, como um fogo que nunca se satisfaz, como um moinho de água que não pára de girar. A Mente Universal, quando forçada pela energia-costume, é como um mágico que faz com que apareçam e se movam coisas e pessoas fantásticas. Completa compreensão de tais coisas é necessária para que se compreenda a ausência do "eu" nas pessoas.

Há quatro espécies de Conhecimento: Conhecimento Aparente, Conhecimento Relativo, Conhecimento Perfeito e Inteligência Transcendental. O Conhecimento Aparente pertence aos ignorantes e simples de espírito, que se apegam à noção de ser e não-ser e que se atemorizam ante o pensamento de ser não-nascido. É produzido pela concordância da tríplice combinação e se liga à multiplicidade de objetos, é caracterizado pela atingibilidade e pela acumulação; é sujeito ao nascimento e à destruição. O Conhecimento Aparente pertence aos traficantes de palavras que folgam com discriminações, assertivas e negativas.

O Conhecimento Relativo pertence ao mundo mental dos filósofos. Surge da capacidade da mente para considerar as relações que as aparências têm entre si e para com a mente que as considera; surge da capacidade da mente para dispor, combinar e analisar essas relações por meio de seus poderes de lógica discursiva e imaginação, em razão dos quais é capaz de penetrar no sentido e na significação das coisas.

O Conhecimento Perfeito pertence ao mundo dos boddhisattvas, que reconhecem que todas as coisas são apenas manifestações da mente; que claramente compreendem a vacuidade, o não-nascimento e a ausência de "eu" de todas as coisas; e que penetraram numa compreensão dos Cinco Dharmas da dupla ausência do "eu" e na verdade da ausência de imagem. O Conhecimento Perfeito diferencia as etapas do boddhisattva e é o caminho e a entrada para o excelso estado da auto-realização da Nobre Sabedoria.

O Conhecimento Perfeito (jnana) pertence aos boddhisattvas que estão inteiramente livres dos dualismos do ser e não-ser, do não-nascimento e da não-aniquilação, de todas as assertivas e negativas, e que, em razão da auto-realização, obtiveram penetrante visão das verdades da ausência de "eu" e da ausência de imagem. Eles não mais discriminam o mundo como sujeito à causação; consideram a causação que rege o mundo como algo semelhante à cidade fabulosa dos gandharvas. Para eles, o mundo é como uma visão e um sonho, é como o nascimento e a morte do filho de uma mulher estéril; para eles, nada evolve e nada desaparece.

Os sábios que amam o Conhecimento Perfeito podem ser divididos em três classes: discípulos, mestres e arhats. Os discípulos comuns são separados dos mestres enquanto, como discípulos comuns, continuem a prezar a noção de individualidade e generalidade; os mestres surgem dentre os discípulos comuns quando, abandonando o erro da individualidade e da generalidade, ainda se aferram a noção de uma ego-alma em razão da qual saem espontaneamente para o retiro e a solidão. Os arhats surgem quando o erro de toda discriminação é verificado. O erro ao ser discriminado pelo sábio revira-se em Verdade, em virtude da "reviravolta" que se verifica dentro do mais profundo estado de consciência. A mente, assim emancipada, entra na perfeita auto-realização da Nobre Sabedoria.

No entanto, Mahamati, se asseveras que há uma coisa tal como a Nobre Sabedoria, isso já não se sustenta, porque qualquer coisa de que se assevere alguma coisa participa, por isso mesmo, da natureza de ser e, assim, e caracterizada pela qualidade de nascimento. A própria assertiva "Todas as coisas são não-nascidas" destrói a verdade disso. O mesmo é exato quanto às afirmações "Todas as coisas são vazias" e "Todas as coisas não têm natureza própria"; ambas são insustentáveis quando postas em forma de asserções. Quando, porém se indica que todas as coisas são como um sonho e uma visão, isso quer dizer que de um certo modo as coisas são percebidas e de um outro modo não são percebidas; Isto é, na ignorância são percebidas, mas no Conhecimento Perfeito não são percebidas. Todas as assertivas e negativas, por serem construções do pensamento, são não-nascidas. Mesmo a asserção de que a Mente Universal e a Nobre Sabedoria são a Realidade Última é uma construção do pensamento e, portanto é não-nascida. Como "coisas", não há qualquer Mente Universal, não há qualquer Nobre Sabedoria, não há qualquer realidade última. A visão penetrante do sábio que se move pelo reino da ausência de imagem e sua solidão é pura. Isto é, para o sábio, todas as “coisas” são varridas e mesmo o estado da ausência de imagem deixa de existir.



82. A crítica ao Budismo chinês, de Hanyu.
Hanyu foi o último grande confucionista antes do renascimento promovido na época Song. Seu libelo contra o budismo trata-se de umas peças mais importantes da literatura chinesa, pois mostra como o chinês letrado, defensor de sua cultura, entendia a invasão de uma teoria estrangeira que abalava suas principais estruturas sociais. O texto de Hanyu tornou-se uma referência histórica, relembrado constantemente pelas tradições posteriores.

Acabo de tomar conhecimento de que Vossa Majestade, tendo ordenado aos bonzos para irem a Fongxiang buscar um osso do Buda, se dispôs a subir a um pavilhão para ver o cortejo e que, transportado dentro de um cofre, o osso vai penetrar no Palácio Imperial.

Serei porventura muito estúpido, mas compreendo perfeitamente que Vossa Majestade não deveria deixar-se ludibriar pelo budismo. Vós não ordenastes esta pomposa procissão para atrairdes os favores do Buda, mas simplesmente, como o ano foi fértil e toda a gente se encontra satisfeita, Vós pensastes em oferecer este espetáculo extraordinário para reforçar o regozijo geral e divertir o povo da cidade. Não se trata por certo de uma espécie de representação teatral que se destina unicamente a divertir as pessoas. Como, com a sabedoria augusta que Vos caracteriza, poderíeis Vós rebaixar-vos até ao ponto de crerdes em semelhantes coisas?

Mas o povo é ingênuo e tacanho, fácil de induzir em erro e persistente nas suas superstições. Se Vos vê agir como vos propondes fazê-lo, julgará por certo que tendes realmente a intenção de honrar o Buda.

Não tardarão as pessoas em queimar a cabeça e os dedos em sinal de penitência, em despojar-se do seu vestuário, em oferecer o dinheiro que possuem, em reunir-se em bandos às centenas, e cada um, vendo o que fazem os outros, tratará de fazer o mesmo e de se atualizar. Os usos serão abolidos, os costumes negligenciados e tornar-nos-emos objeto de escárnio do mundo inteiro.

Esta situação pode trazer-nos conseqüências graves. O Buda afinal não passa de um bárbaro estrangeiro. Suponhamos que era vivo ainda e que tivesse sido enviado em missão junto da nossa corte; viria à capital, e Vossa Majestade recebê-lo-ia com benevolência. Não teria obtido mais do que uma recepção na sala de audiências, um festim ritual em honra do hóspede, a oferta de uma túnica. Em seguida, uma escolta acompanhá-lo-ia à fronteira, e seria tudo; nada se passaria que fosse susceptível de perturbar as multidões.

Como compreender então, uma vez que morreu já há tanto tempo, que se tenha dado ordem para introduzir no Palácio Imperial Interdito um osso ressequido e podre, simples detrito em composição? Vossa Majestade vai em pessoa ver coisas tão abjetas, e não há um ministro para lhe apontar esta falta, um censor para verificar tal inconveniência? Sinto verdadeira vergonha por eles.

Venho suplicar a Vossa Majestade que mande devolver esse osso a quem de direito; que o atirem à água, que se extirpe para sempre a raiz de tais erros, a fim de cortar rapidamente os desvarios do império e suprimir um tema de confusão para as gerações futuras. Assim, o império inteiro poderá conhecer o comportamento de um grande sábio, cuja visão se eleva acima do comum, a uma altura inconcebível. Só então, na verdade, tudo se restabelecerá, e poderemos todos regozijar-nos.

Se o Buda possui um poder sobrenatural e pode provocar calamidades e exercer uma influência maléfica, rogo-lhe que todas as desgraças, todos os infortúnios que ele possa provocar recaiam inteiramente na minha pessoa: que o Céu seja testemunha do que digo: sofrê-lo-ei sem me arrepender.



83. Sobre a existência dos demônios, de Hanyu.
O mesmo Hanyu faz uma apreciação breve sobre a existência dos demônios, indicando sua crença nestes seres como criaturas naturais, perfeitamente controláveis e nada místicas. Note-se, ainda, que os “demônios” aqui apresentados são, na verdade, espíritos, que podem tanto providenciar boa ou má sorte. Hanyu, porém, sempre deixa entreaberta a possibilidade cética de se crer que, o que se entende por “demônios” nada mais é do que a má compreensão de um evento natural, ponto arduamente defendido pelos letrados contra o que julgavam serem crenças vãs e supersticiosas.

Às vezes ouvimos silvos nas vigas do telhado; vamos com uma tocha e não vemos nada. Serão demônios? Não, demônios não são audíveis. Às vezes cremos ver alguém de pé num canto; são demônios? Não, porque demônios não são visíveis.

Às vezes nos sentimos como se fossemos golpeados ou empurrados por algo. Tentamos agarrá-lo e só encontramos vazio... Serão demônios? Não, os demônios não podem atuar. Não tem forma visual nem audível, como teriam força para atuar?

Então, se dizemos que os demônios não são ouvidos, não são vistos nem tem força para atuar, isso não equivale a dizer que não existem demônios? A isto eu respondo: a natureza possui uma grande quantidade de elementos que tem forma e carecem da faculdade de emitir sons: assim são a terra e a pedra.

A natureza possui, porém, numerosos elementos que tem a faculdade de emitir sons e não tem forma: assim são o vento e o trovão.

A natureza possui também elementos que tem forma e emitem sons; assim são os homens e os animais.

A natureza, enfim, possui elementos que carecem de forma e da faculdade de emitir sons: assim são os demônios e os espíritos.

Mas, me dirão, sendo assim, como é possível que se produzam fenômenos inexplicáveis que intervém na natureza e nos assuntos humanos? Por dois motivos.

O estado normal dos demônios é vago e confuso, sem forma ou som. Não obstante, quando os homens descuidam os preceitos do céu, quando esquecem o bem público, quando desafiam as leis da natureza, quando se rebelam contras as regras naturais das relações humanas e desrespeitam a justiça imanente, os demônios adotam uma forma, utilizam um som: sua resposta a essa situação consiste em fazer que chovam sobre a humanidade calamidades e desastres. Por isso todas as desgraças se devem aos próprios homens. Uma vez que se esgota seu impulso, os demônios voltam ao nada, que é seu estado ordinário.

Também podemos dizer, então: o que é a natureza?

São as coisas que se manifestam mediante formas e sons, como a terra e a pedra, o vento e trovão, o homem e o animal. Há outras, no entanto, que não possuem forma ou som: são os demônios e os espíritos. Há, finalmente, aquelas que não tem forma nem som, mas não são desprovidos deles: são os prodígios da natureza.

Sua interferência junto aos humanos é irregular. Devido a isso, suas interferências juntos aos homens são tão propícias quanto nefastas, assim como suas ações podem passar sem deixar rastro algum e sem trazer alegria ou dor.

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