VISÕES DOS OUTROS

A história chinesa é construída pela alternância de ciclos de abertura e fechamento para o resto do mundo. A tradicional xenofobia atribuída aos chineses não é verdadeira, mas resultante de épocas distintas em que a presença estrangeira se deu de forma invasiva, como foi o caso da dinastia Yuan - Mongol (1271+1368), Qing (1644+1911) ou mesmo da presença européia após o século 19. Nestes intervalos, os chineses cultivaram a noção proposta por Confúcio de que ser chinês correspondia a compartilhar de sua cultura – viver do campo, ter cidades, possuir escrita, ritos e literatura – o que os opunha aos “bárbaros”, que eram nômades e que não dispunham muitas vezes de cidades, escrita ou daquilo que poderia ser considerado “literatura”. Essa divisão, no entanto, não era excludente – mesmo Confúcio acreditava que os “bárbaros” estrangeiros poderiam ser melhores do que os chineses não-educados, e que estes referências para uma concepção de cultura poderiam existir em outras civilizações que não fossem a chinesa. A época Han (- 206 + 221) e Tang (618+907), por exemplo, foram momentos em que as portas da China estavam absolutamente abertas aos estrangeiros – como hoje vemos, novamente, o mundo chinês abrir-se a presença de outras culturas. Nesta seleção de textos, veremos um memorial de Lisi, ministro da dinastia Qin que, mesmo sendo conhecido por sua dureza e impiedade, defendia a valiosa contribuição que a presença de estrangeiros poderia dar para o império. Em Sima Qian, teremos o contraponto dos Xiongnu, temidos bárbaros das estepes que seriam conhecidos no ocidente, posteriormente, como Hunos. A idéia de que o conceito de civilidade poderia ser aplicado a outros povos aparece na descrição de Fanye (398+445), que escreveu o Livro da Dinastia Han Posterior (Hou Hanshu), sobre a civilização romana. A dominação mongol (Yuan) trouxe os primeiros capítulos da intolerância e da prepotência em relação aos estrangeiros (por mais que a suposta obra de Marco Pólo insistisse no contrário), como aparece nesta carta endereçada ao Papa, trazida por Frei Benedito da Polônia (séc. 13) após seu retorno da China. O mesmo tom repete-se na época dos Qing, também conhecidos como manchus, que constituíam uma dinastia estrangeira na China, e que enviam esta missiva pouco educada para o soberano da Inglaterra após a visita do embaixador Macartney (1793). Nestes tempos difíceis, os chineses não confiavam em seus governantes, e muito menos nos estrangeiros europeus que lhes impunham toda sorte de humilhações cotidianas. Ainda assim, um viajante chinês, Li Zhaoluo, realiza um passeio pela Europa, trazendo boas impressões de Portugal, como veremos a seguir. Após a independência chinesa, os comunistas criam teorias para compreender o período da Guerra Fria, que orientariam suas ações diplomáticas ao redor do mundo. Inicialmente, Maozedong trata as potências mundiais como imperialistas, no texto “Tigres de papel”. Depois, os chineses elaborariam outra teoria, mais pragmática e conveniente, que seria conhecida como Teoria dos Três Mundos, propondo que a divisão do planeta se dava entre o bloco Americano e Soviético, dos países desenvolvidos aliados a uma dessas tendências, e do mundo em desenvolvimento, do qual a China buscaria a liderança.


84. Lisi – Memorial para a manutenção dos estrangeiros.
No seu “Memorial apresentado para censurar a expulsão dos estrangeiros”, Lisi defende que a presença da cultura estrangeira era benéfica para o enriquecimento do Estado e da sociedade. Este ponto de vista prova que os Qin, por mais duros que fossem, eram bastante pragmáticos e realistas quanto a contribuição que os pensadores estrangeiros poderiam dar para sua civilização.

Os grandes ministros da casa real de Qin apresentaram, em comum, uma solicitação ao rei de Qin dizendo: os súditos de outros reinos vem a Qin oferecer seus serviços; em sua maior parte, estão aqui com a missão de espionar. Rogamos que vossa excelência expulse, sem demora, a todos os estrangeiros.

Antes de se efetuar esta medida, o conselheiro Lisi apresentou o seguinte memorial:

Sabemos que alguns oficiais propuseram a expulsão dos estrangeiros. Suponho que isso seja um erro. Os duques, reis, e nossos ancestrais recorreram sempre a talentos estrangeiros. Graças a eles, anexaram numerosas terras e venceram os bárbaros do oeste. Seguindo seus conselhos, modificaram as leis e transformaram seus costumes. Graças as novas leis, o povo se tornou rico e próspero; o país, rico e poderoso. O povo aceitou essas leis com alegria, e a nobreza se submeteu aquiescente a elas. Até os dias de hoje, este país segue forte graças as suas leis.

Considerando isso, como podemos expulsar os estrangeiros? Que dano podem fazer eles?

Suponhamos que antigamente fossemos alijados da presença de sábios e letrados estrangeiros, e que estes não fossem admitidos no serviço do estado. O resultado seria que o nosso país não teria hoje a riqueza e as vantagens que possui, nem gozaria de sua fama, poder e grandeza. (...) as montanhas não expulsam a terra que adere a elas, e por isso são altas. Os grandes rios e o mar não desdenham dos pequenos córregos que aderem a eles, e por isso são tão profundos. O soberano não se aparta dos homens que vem até ele, e por isso sua virtude é tão radiante. Assim como a terra não tem dois lados, não há país que não tenha estrangeiros em seu povo; as quatro estações são igualmente boas, os espíritos manifestam para que quiser sua benéfica influencia. Porque praticavam esta doutrina, os grandes reis da antiguidade não tinham rival.

Agora, alguns querem rechaçar o povo para que vá engrossar as fileiras dos inimigos; querem expulsar os hospedes estrangeiros para que vão servir aos príncipes rivais; querem que os homens de valor retrocedam, por acreditar que não terão valor algum aqui, e que não venham. Isso é, como diz o provérbio, dar armas aos bandidos e os tesouros aos ladrões.

Existem muitos objetos que podem ser considerados preciosos sem serem nativos; muitos homens que, sem ser desse país, podem ser fiéis. Se agora exilarmos os estrangeiros, que irão engrossar as fileiras dos inimigos, se diminuirmos nossa população para aumentarmos a dos adversários, vamos despovoar a nos mesmos e aumentar o ressentimento dos estrangeiros contra nós. Se for assim, por mais que queiramos evitar o perigo, não poderemos fazê-lo.



85. Sima Qian e os Xiongnu.
Neste sucinto trecho, Sima Qian nos dá uma idéia do que é a concepção de “bárbaro” para os chineses, por meio de uma descrição dos costumes dos Xiongnu, o temível povo das estepes que seria conhecido na Europa, séculos depois, pela corruptela de “Hunos”. O diálogo entre estas duas civilizações sempre foi difícil, tanto pelos modos diferentes quanto pelas visões de mundo e concepções de vida.

Eles sempre se mudam à procura de água e pasto, e não têm nenhuma cidade cercada ou habitações fixas, não se casam nem praticam qualquer tipo de agricultura. Porém, as terras deles são divididas em regiões debaixo do controle de vários líderes. Eles não têm nenhuma escrita, e até mesmo promessas e acordos são só verbais. Os pequenos meninos começam desde cedo a aprender a montar em ovelhas e matar pássaros e ratos com um arco e flecha; quando eles envelhecem, atiram em raposas e lebres para comer. Assim todos os homens jovens sabem usar um arco e agir como uma cavalaria armada em ocasiões de guerra. É o costume deles grupar os rebanhos em tempos de paz e ganhar algum dinheiro, ou ficar caçando; mas em períodos de crise eles levantam suas armas e vão em expediçoes para saquear e pilhar. Isto parece ser a natureza inata dele. Para armas de longo alcance eles usam arcos e setas, e espadas e lanças para luta corpo-a-corpo. Se a batalha vai bem eles avançam, senão se retiram, pois não consideram vergonha recuar ou fugir do perigo. A única preocupação deles é o ganho pessoal, e eles não conhecem nenhum tipo de decoro ou retidão.

[...]

Quando um dos enviados de Han observou desdenhosamente a maneira com os Xiongnu tratavam as pessoas de idade, Xing Xinshuo (um eunuco a serviço dos Xiongnu) começou a repreendê-lo. “De acordo com o costume Han”, ele disse, “ quando os jovens são chamados para servir no exército, tendo que ir para as guarnições de fronteira, os pais velhos deles, voluntariamente, não enviam de casa roupas limpas e comida para provê-los?”

“Sim, eles o fazem”, admitiu o enviado Han.

“Para os Xiongnu, a guerra é seu grande negócio; se um velho não é capaz de lutar, naturalmente a melhor comida é dividida entre os mais jovens. Assim, os jovens estão sempre dispostos a lutar pelo seu povo, e pais e filhos podem viver em segurança. Como você pode dizer, então, que os Xiongnu não pensam nos velhos?”

“Mas entre os Xiongu”, continuou o enviado, “pais e filhos dormem na mesma barraca. Quando um pai morre, os filhos casam com as madrastas, e quando os irmãos morrem, os outros irmãos se casam com a viúvas. Além disso, esta gente deselegante nada sabe sobre chapéus e cintos, nem dos ritos ou das leis”.

“De acordo com o costume Xiongnu”, disse Xing, “as pessoas comem a carne dos animais domésticos e bebem seu leite, usam suas peles, e os deixam pastar de um lugar para o outro em busca de comida e água. Então, em tempo de guerra, eles praticam equitação e tiro, e em tempos de paz não tem nada pra fazer. Suas leis são simples e fáceis de seguir; a relação entre eles é informal e sincera, de modo que seu país é mais fácil de administrar do que aquele governado por uma pessoa. A razão pela qual eles casam madrastas com filhos ou irmãos com cunhadas é porque odeiam ver seu clã desaparecer. Entre os Xiongnu, o clã é tudo; e mesmo em tempos de crise, eles continuam juntos. Na China, porém, tais relações impróprias não existem, mas as pessoas de uma mesma família se matam mesmo assim. Esta é, exatamente, a razão pela qual existem tantas mudanças dinásticas na China. Além disso, entre os chineses, o exercício da etiqueta e da cortesia gera mais inimizades do que deveria ser; os luxos das casas e palácios esvaziam os recurso da nação. Os homens tentam adquirir e assegurar comidas e vestimentas, cada vez mais, se trancando entre muros e fortificações. No entanto, embora o perigo os ameace, eles não treinam para a guerra em tempos de paz, e só ficam tentando ganhar dinheiro. Basta de baboseiras! Ou você acha que tem alguma autoridade só porque usa um chapéu?”



86. Fanye - uma descrição sobre os Romanos.
Fanye, autor da continuação dos anais dinásticos de Han, nos traça uma breve descrição da civilização romana. Embora contenha alguns erros, fica claro que Fanye tinha informações relativamente precisas sobre o assunto, obtidas junto a mercadores ou embaixadores. Os chineses consideravam os romanos civilizados, à sua maneira, mas pareciam estar desatualizados sobre o sistema político (descrevendo o que seria a república, numa época em que Roma já era império há séculos). Fanye cita, ainda, uma possível embaixada de Daqin à China, mas sobre a qual se sabe muito pouco – provavelmente seriam mercadores em busca de vantagens comerciais.

O povo de Daqin (Roma) tem historiadores e intérpretes de línguas estrangeiras, tal como os Han. As muralhas de suas cidades são de pedra. Eles usam cabelo curto, vestem roupas bordadas e deslocam-se em carros muito pequenos. Os governantes desempenham suas funções durante um curto espaço de tempo e são escolhidos entre os homens mais valorosos. Quando as coisas não vão bem, são substituídos. O povo de Daqin possui elevada estatura.(...) Vestem-se diferentemente dos chineses. Sua terra produz ouro e prata, todas as espécies de bens preciosos, âmbar, vidro e ovos gigantes (ovos de avestruz). Da China, através de Anxi (Pártia), eles obtêm a seda que transformam em fina gaze. Os mágicos de Daqin são os melhores do mundo. Sabem engolir fogo e fazer malabarismos com várias bolas. Os Daqin são honestos. Os preços são tabelados e os cereais custam sempre barato. Os silos e o tesouro público estão sempre repletos. O povo de Anxi impede-os de comunicar-se conosco por terra; além disso, as estradas são infestadas de leões, o que torna necessário viajar em caravana e com escolta militar. Os Daqin primeiramente enviaram emissários à nossa terra (em +166). Desde então, seus mercadores têm feito freqüentes viagens a Rinan (Tonquim).



87. A resposta mongol a uma das primeiras missões católicas no Oriente.
A carta a seguir, levada ao Papa por Frei Benedito da Polônia, nos dá uma idéia da mudança de perspectiva do mundo chinês, dominado pelos mongóis, em relação ao mundo exterior. A nota da carta é severa: o oriente mongol é poderoso, o ocidente deve saber seu lugar. A dinastia Yuan enviou esta carta no séc. 13, por meio de um dos viajantes cristãos que desejavam entabular conversações com o império; veremos, contudo, que os Qing, quase 4 séculos depois, mantiveram o mesmo tom em relação ao embaixador Macartney da Inglaterra, construindo o cerne da xenofobia que assolou a China como uma praga na época moderna. Note-se, porém, que os argumentos de Guiuc são absolutamente claros e racionais quanto à imposição de uma fé estrangeira, tendo em vista que os mongóis lidavam com vários tipos de crenças e povos diferentes, e possuíam um conhecimento sobre o mundo que os europeus ignoravam.

Carta do Cã Guiuc (1257), dos mongóis ao papa:

A força de Deus, imperador de todos os homens, envia ao grande Papa esta carta, autêntica e verdadeira. Aconselhando sobre o modo de se estabelecer a paz entre nós e ti, Papa, e todos cristãos, tu nos enviaste um embaixador conforme ouvimos dele e constava em tuas cartas. Portanto, se quiseres ter paz conosco, Papa, e todos os reis e governantes, não tardes, de modo algum, vir até nós para estabelecer a paz, e então ouvirás a nossa resposta ao mesmo tempo conhecerás a nossa vontade.

No texto de tua carta, é dito que nós devemos ser batizados nos tornar cristãos. A isso te respondemos com poucas palavras, que absolutamente não compreendemos por que deveríamos fazê-lo. Quanto ao outro ponto de que nos falavas na tua carta, isto é, de que te maravilhas de tanta matança de homens, sobretudo cristãos em particular de poloneses, morávios e húngaros, respondemos do mesmo modo que também não entendemos isso. Todavia, para que não pareça que queremos deixar completamente sob silêncio o assunto, dizemos que se deve responder-te do seguinte modo: porque, não obedeceram nem à palavra de Deus, nem à ordem de Chingiscan Cã e, reunindo o grande conselho, mataram os embaixadores, por isso Deus ordenou que os aniquilássemos e os entregou em nossas mãos. De resto, se Deus não tivesse feito isso, que coisa teria podido fazer um homem a outro homem? Mas vós, homens do Ocidente, credes que só vós, cristãos, existis e desprezais os outros. Como podeis saber a quem Deus concede a sua graça? Nós, porém, adorando a Deus, na força de Deus devastamos toda a terra do Oriente e do Ocidente. E, se essa força de Deus não existisse, que poderiam fazer os homens? Mas, se vós aceitais a paz e quereis entregar a nós vossas forças, tu, Papa, juntamente com os poderosos cristãos, não tardeis, de modo algum, a vir a mim para estabelecer a paz, e então saberemos que quereis paz conosco. Se, porém, não crerdes nesta missiva de Deus e nossa e não escutardes o conselho de vir a nós, então saberemos com certeza que quereis ter guerra conosco. Depois disso, o que acontecerá não sabemos. Só Deus o sabe. Chingischan, primeiro imperador. Segundo: Ochodaychan. Terceiro: Guiuchchan.



88. A resposta do imperador Qing Qianlong ao embaixador britânico Lorde Macartney.
A embaixada de Lorde Macartney à China foi a primeira tentativa da Inglaterra em abrir os mercados chineses aos seus produtos, sem ter que passar pela intermediação dos portugueses em Macau ou dos mercadores hong chineses em Cantão. No entanto, a missão foi mal sucedida, em função de um problema relacionado aos costumes chineses: na presença do imperador, os súditos deveriam executar o Koutou, ou seja, prosternar-se batendo a cabeça no chão, coisa que os ingleses se recusaram a fazer. Devido a sua falta de educação, o imperador manchu Qianlong lhes deixou somente uma carta, severa e exigente, que praticamente encerrou as possibilidades de diálogo posteriores. O desfecho disso foram as terríveis guerras do ópio (1839-42 e 1856-60), que finalmente colocaram a China Qing em contato com o mundo moderno de maneira trágica.

Dominando o vasto mundo, tenho apenas um propósito em vista, ou seja, manter controle absoluto e cumprir com as obrigações de Estado. Objetos estrangeiros e caros não me interessam [...] Não tenho necessidade dos manufaturados de vosso país. [...] Cabe a vós, ó Rei, respeitar minhas opiniões e manifestar ainda maior devoção e lealdade no futuro, para que, através da perpétua submissão ao nosso trono, possais assegurar paz e tranqüilidade a vosso país daqui por diante. [...] Nosso Império Celestial possui todas as coisas em prolífica abundância e não carece de nenhum produto dentro de suas fronteiras. Não havia, portanto, nenhuma necessidade de importar manufaturas bárbaras de fora, em troca de nossos produtos. [...] Não esqueço a distância solitária de vossa ilha, separada do mundo por extensões imensas de mar; tampouco esqueço vossa escusável ignorância sobre os costumes de nosso império Celestial. [...] Obedecei tremendo e não sejais negligente!



89. As viagens de Li Zhaoluo em Portugal.
Li Zhaoluo (1769 +1841) foi um dos primeiros viajantes chineses a andar pela Europa, deixando uma narrativa sobre os países onde passou e suas culturas. Aqui, neste fragmento, ele traça um curioso panorama sobre Portugal, com quem os chineses mantinham relações relativamente boas.

Os indígenas têm pele asseada, pois amam a limpeza. Vivem em casas de mais de um andar, providas de móveis e de utensílios da melhor qualidade (...) As paredes são recaiadas assim que a pintura envelhece um pouco (...) Os homens usam roupas bem apertadas, jaqueta curta e calças. Para qualquer negócio importante, acrescentam ao seu traje um outro, curto na frente e longo atrás, como asas de cigarra. Os oficiais colocam sobre os ombros coisas incrustadas na forma de cabaça, e o ouro é mais nobre que a prata. Eles usam chapéus redondos com bordas retas e fundo chato. A blusa das mulheres também é estreita e curta. Elas não usam calças, mas vestem saias, até oito ou dez, de pano as pobres, de seda as ricas. Todas preferem os tecidos leves. As jovens mostram o peito, as velhas o dissimulam. Elas não saem nunca sem um longo e largo lenço sobre a cabeça, que chega até os joelhos. As ricas acrescentam um véu negro, muito fino (...).

A maioria leva na mão um rosário, de pérolas ou de pedras preciosas o dos ricos. As mulheres como os homens usam sapatos de couro. Ninguém pode ter duas mulheres, do rei às pessoas do povo. Não se pode casar de novo, a não ser após a morte da esposa; esta pode fazer o mesmo se o marido morre. Quando uma moça quer escolher um marido, a família do rapaz começa pela avaliação do dote e só dá consentimento se se considerar satisfeita. As famílias têm vergonha de não poder casar as filhas, e para evitar isso estão prontas a arruinar-se. Em contrapartida, pouco importa que o filho seja casado ou não. Não há empecilhos para o casamento entre pessoas que têm o mesmo nome de família. Somente quando são primos isso constitui um obstáculo. Uma viúva pode juntar-se em segundas núpcias com um sobrinho ou um doméstico. Os parentes próximos devem obter a autorização prévia do chefe da religião (...).

As mulheres vão orar no templo a cada sete dias. No casamento, não se volta junto para a casa antes de ter escutado o grande padre pregar a Lei. Se o rapaz e a moça têm a intenção de se casar, os familiares e as casamenteiras devem avisar o grande padre ou o chefe da religião que faz a proclamação oficial para que todo mundo saiba. Caso haja um compromisso secreto, é permitido ao rapaz e a moça declará-lo, e ninguém pode contrariá-los, nem os pais nem as mães.

Se uma mulher conduziu-se mal e deseja arrepender-se, ela entra no templo e solicita o perdão do monge. Este se senta em uma espécie de nicho e, do lado, abre uma janelinha junto à qual a mulher se ajoelha. Ela sussurra ao ouvido do monge aquilo que se passou. Ele lhe prega a Lei e a declara liberada de sua falta. Se alguma vez o monge revelasse o que ouvira seria recriminado e condenado ao estrangulamento. Os rapazes e moças que se tornaram culpados e temem a recriminação do chefe da casa vão ao templo procurar o monge. Se ele os considera liberados de suas faltas, adverte por carta o chefe da casa, que não ousa recriminá-las de novo, não importando quão grande seja sua cólera (...).

Não se muda de era quando o rei sobe ao trono, pois os anos são contados com base na fé da doutrina do Senhor do Céu. O ano começa sempre sete dias depois do solstício de inverso. Ele se dirige em doze meses que não levam em conta os Ciclos da Lua. E por isso que o mês é de trinta e um dias, pois se considera que não é o caso de tomar como norma uma Lua que empresta seu brilho do Sol (...).

Diante do rei ou seus chefes, os membros do exército ou as pessoas do povo tiram o chapéu, se eles estão ao ar livre; em recintos fechados, abaixam-se incontinenti e tomam nas mãos o pé para beijá-lo; retiram-se em seguida, curvados e com a cabeça baixa, dando vários passos para trás, arrastando a perna; eles falam de pé, sem se ajoelhar.

Um filho que não vê seu pai há muito tempo tira o chapéu antes de entrar e estreita contra si o corpo de seu Pai, que lhe bate repetidamente nas costas com as duas mãos espalmadas. Eles se beijam várias vezes na boca. Em seguida, o filho se inclina, recua alguns passos arrastando a perna, depois fala de pé (...) Amigos ou parentes que se encontram na rua descobrem as cabeças (...) As moças ou mulheres obrigam-se a receber os visitantes da família e a entretê-los conversando. Quando elas saem com o marido ou um familiar de idade, andam de mãos dadas. Pode ocorrer, assim, que um homem leve duas mulheres pela mão (...) Faz parte de seus costumes estimar os ricos e desprezar os pobres. Mesmo sendo primo, tio ou sobrinho, uma pessoa, sendo pobre, não ousaria entrar ou comer em uma casa rica (...).



90. Maozedong – os imperialistas são tigres de papel.
No texto a seguir, o Mao que fala ainda é o revolucionário vencedor, empolgado pela transformação da China e disposto a exportar a lutas das classes proletárias. No entanto, o rancor chinês não era descabido para com as nações colonialistas – afinal, a China havia passado por um século de humilhações e exploração, e a vitória comunista parecia se tratar da grande virada dos explorados contra a burguesia.

Como tudo no mundo tem natureza dúbia (é a lei da unidade dos Contrários), da mesma forma o imperialismo e todos os reacionários tem uma natureza dupla - são verdadeiros tigres e, ao mesmo tempo, tigres de papel. No passado, a classe dos senhores de escravos, a classe feudal dos grandes latifundiários e a burguesia foram, antes de conquistar o poder, e algum tempo depois, plenos de vitalidade, revolucionários e progressistas; eram os tigres verdadeiros. Mas, na fase posterior, como seus antagonistas - a classe dos escravos, o campesinato e o proletariado - cresceram e se engajaram numa luta contra eles, uma luta cada vez mais violenta, e as classes dominantes se transformaram, pouco a pouco, em seu oposto, tornaram-se reacionárias, retrógradas, tigres de papel. E, ao final das contas, foram ou serão aniquiladas pelo povo. Mesmo na luta de morte que lhe consagra o povo, estas classes reacionárias, retrógradas, decadentes, mantinham, ainda, sua natureza dupla. Em um sentido, eram tigres verdadeiros; devoravam as pessoas, devoravam-nas aos milhões, às dezenas de milhões. A luta popular atravessou um período de dificuldades e provações, e seu caminho fez voltas e mais voltas.

O povo chinês deveria consagrar mais de cem anos à luta para liquidar o domínio do imperialismo na China, do feudalismo e do capitalismo burocrático, e sacrificar dezenas de milhões de vidas humanas, antes de alcançar a vitória, em 1949. Eis aí, não eram tigres vivos, tigres de ferro, verdadeiros tigres? Mas, no final das contas, transformaram-se em tigres de papel, tigres mortos, tigres de queijo de soja. Eis aí os fatos históricos. Quem não os viu? Quem deles não ouviu falar? Na verdade, eles existem aos milhares, dezenas de milhares! Milhares e dezenas de milhares! Assim, considerados em sua essência, do ponto-de-vista do futuro e sob o ângulo estratégico, o imperialismo e todos os reacionários devem ser julgados pelo que são: tigres de papel. É nesse ponto que se fundamenta nosso pensamento estratégico. De outro lado, são também tigres vivos, tigres de ferro, verdadeiros tigres; devoram os homens. É nesse ponto que se fundamenta nosso pensamento tático



91. A Teoria dos Três Mundos.
Diante da constatação de um mundo gigantesco e multicultural, os chineses comunistas reformularam suas visões de mundo, criando uma teoria sobre o equilíbrio de forças entre os Estados Unidos, a União Soviética, os países Europeus desenvolvidos e o chamado “terceiro mundo”, ou “países em desenvolvimento”. Esta concepção demonstra como os chineses entendiam o novo processo de relação entre as culturas e economias mundiais, e seu papel em meio a elas. O texto a seguir mostra a proposta de Deng Xiaoping, em que os chineses reformulam sua visão geopolítica, propondo a teoria dos três mundos.

No momento, a situação internacional é, em sua maioria, favorável aos países em desenvolvimento e aos povos do mundo. Cada vez mais, a velha ordem baseada mo colonialismo, imperialismo e hegemonismo está sendo arruinada e abalada a suas fundações. As relações internacionais estão mudando drasticamente. O mundo inteiro está em turbulência e desassossego. A situação é de uma “grande desordem debaixo de céu,” como nós o chinês chamamos. Esta “desordem” é uma manifestação de todas as contradições básicas do mundo contemporâneo. Está apressando a desintegração e declínio das forças reacionárias decadentes, e está estimulando o despertar e o crescimento das forças emergentes dos povos.

Nesta situação de “grande desordem debaixo de céu,” todas as forças políticas no mundo sofreram uma divisão drástica causadas por um prolongado processo de lutas e conflitos. Um número grande de países asiáticos, africanos e latino-americanos alcançou independência um depois de outro, e eles estão conseguindo um papel cada vez maior nos negócios internacionais. Como resultado do aparecimento de social-imperialismo, o campo socialista, que existiu durante um tempo depois que Segunda Guerra Mundial, não teve uma existência muito longa. Devido à lei do desenvolvimento desigual de capitalismo, a coligação política do imperialismo Ocidental está se desintegrando também. Julgando as mudanças nas relações internacionais, o mundo hoje na verdade consiste em três partes, ou três mundos que estão interconectados e em contradição uns para com os outros. Os Estados Unidos e a União soviética compõem o Primeiro Mundo. Os países em desenvolvimento na Ásia, a África, América Latina e outras regiões compõem o Terceiro Mundo. Os países desenvolvidos entre os dois compõem o Segundo Mundo.

As duas superpotências, os Estados Unidos e a União soviética, estão buscando vaidosamente a hegemonia mundial. Cada um deles tenta, ao seu modo, trazer os países em desenvolvimento de Ásia, África e América Latina para debaixo do seu controle e, ao mesmo tempo, tiranizar os países desenvolvidos que não são seus partidários.

As duas superpotências são os maiores exploradores internacionais e opressores de hoje. Elas são a fonte de uma nova guerra mundial. Ambos possuem números grandes de armas nucleares. (...) Nós defendemos que a proteção de independência política é a primeira condição prévia para que os países do Terceiro Mundo possam desenvolver sua economia. Alcançando independência política, o povo de um país deu apenas o primeiro passo, e eles têm que proceder para consolidar esta independência, pois ainda existem forças de sobra do colonialismo em casa, e ainda há o perigo de subversão e agressão por parte do imperialismo e do hegemonismo. A consolidação de independência política necessariamente é um processo de lutas repetidas. Numa análise final, independência política e independências econômicas são inseparáveis. Sem independência política, é impossível alcançar independência econômica; sem independência econômica, a independência de um país está incompleta e insegura.

Os países em desenvolvimento têm grandes potenciais por desenvolver a economia deles independentemente. (...) Os países do terceiro mundo exigem que as presentes relações econômicas internacionais extremamente desiguais sejam mudadas, e eles fizeram muitas propostas racionais de reforma. O Governo chinês e o seu povo endossam calorosamente e apóiam firmemente estas propostas dos países do terceiro mundo.

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